A LUTA DE JACÓ
O papa Bento XVI conduz semanalmente, durante a oração do
Ângelus (ou do Regina Coeli, durante o tempo pascal), um momento de catequese.
O tema desses ensinamentos é oração.
Queridos irmãos e irmãs
Hoje, eu gostaria de refletir convosco sobre um texto do
Livro do Gênesis que narra um episódio um pouco especial da história do
patriarca Jacó. É um fragmento de difícil interpretação, mas importante na
nossa vida de fé e de oração: trata-se do relato da luta com Deus no vau de
Jaboc, do qual ouvimos um pedaço.
Como recordareis, Jacó tinha tirado do seu irmão Esaú a
primogenitura, em troca de um prato de lentilhas, e depois recebeu de maneira
enganosa a bênção do seu pai Isaac, que nesse momento era muito idoso,
aproveitando-se da sua cegueira. Fugindo da ira de Esaú, refugiou-se na casa de
um parente, Labão; tinha se casado, havia enriquecido e voltava à sua terra
natal, disposto a enfrentar o seu irmão, depois de ter tomado algumas prudentes
medidas. Mas quando tudo está preparado para este encontro, depois de ter feito
que os que estavam com ele atravessassem o vau que delimitava o território de
Esaú, Jacó fica sozinho e é agredido por um desconhecido, com quem luta a noite
inteira. Esta luta corpo a corpo – que encontramos no capítulo 32 do Livro do
Gênesis – se converte para ele em uma singular experiência de Deus.
A noite é o momento favorável para agir escondido; é o tempo
oportuno, portanto, para Jacó, de entrar no território do irmão sem ser visto e
talvez com a ilusão de pegar Esaú de surpresa. No entanto, é ele quem é
surpreendido por um ataque imprevisto, para o qual não estava preparado. Havia
usado sua astúcia para tentar evitar uma situação perigosa, acreditava ter tudo
sob controle e, no entanto, encontra-se agora tendo de enfrentar uma luta
misteriosa que o surpreende em solidão e sem dar-lhe a oportunidade de
organizar uma defesa adequada. Indefeso, à noite, o patriarca Jacó luta contra
alguém. O texto não especifica a identidade do agressor; usa um termo hebraico
que indica “um homem” de maneira genérica, “um, alguém”; trata-se de uma
definição vaga, indeterminada, que quer manter o assaltante no mistério. Está
escuro, Jacó não consegue distinguir seu adversário, e também para nós
permanece o mistério; alguém enfrenta o patriarca e este é o único dado seguro
que nos dá o narrador. Somente no final, quando a luta já terminou e esse
“alguém” desapareceu, só então Jacó o nomeará e poderá dizer que lutou contra
Deus.
O episódio se desenvolve na escuridão e é difícil perceber
não só a identidade do assaltante de Jacó, senão
também como se deu a luta.
Lendo o texto, é difícil estabelecer qual dos dois adversários está ganhando;
os verbos são usados frequentemente sem um sujeito explícito e as ações
acontecem quase de forma contraditória; então, quando parece que um dos dois
vai prevalecer, a ação seguinte desmente isso imediatamente e apresenta o outro
como vencedor. No começo, de fato, Jacó parece ser o mais forte, e o adversário
– diz o texto - “não podia vencê-lo” (v. 26); finalmente, atinge Jacó no fêmur,
provocando-lhe um deslocamento. Poderíamos pensar que Jacó sucumbe; no entanto,
é o outro que lhe pede que o deixe partir; mas o patriarca se nega, impondo uma
condição: “não te largarei, se não me abençoares” (v. 27). Aquele que de maneira
enganosa havia roubado do seu irmão a bênção do primogênito agora a quer de um
desconhecido, de quem talvez começa a perceber as conotações divinas, sem poder
reconhecê-lo verdadeiramente.
O rival, que parece estar retido e portanto, derrotado por
Jacó, ao invés de ceder à petição do patriarca, pergunta seu nome: “Qual é o
teu nome?”. O patriarca lhe responde: “Jacó” (v. 28). Aqui a luta dá um giro
importante. Conhecer o nome de alguém implica em uma espécie de poder sobre a
pessoa, porque o nome, na mentalidade bíblica, contém a realidade mais profunda
do indivíduo, desvela o segredo e o destino. Conhecer o nome de alguém quer
dizer conhecer a verdade sobre o outro e isso permite poder dominá-lo. Quanto,
portanto, por petição do desconhecido, Jacó revela seu nome, está se colocando
nas mãos do seu adversário, é uma forma de render-se, de entregar-se totalmente
ao outro.
Mas, nesse gesto de rendição, Jacó também acaba sendo
vencedor, paradoxalmente, porque recebe um nome novo, junto ao reconhecimento
de vitória por parte do seu adversário, que lhe diz: “Doravante não te chamarás
Jacó, mas Israel, porque lutaste com Deus e com homens, e venceste” (v. 29).
“Jacó” era um nome que recordava a origem problemática do patriarca; em
hebraico, de fato, recorda o termo “calcanhar” e remete o leitor ao momento do
nascimento de Jacó, quando, saindo do ventre materno, agarra o calcanhar do seu
irmão gêmeo (Gn 25, 26), quase pressagiando o dano que realiza ao seu irmão na
idade adulta. Mas o nome de Jacó recorda também o verbo “enganar, suplantar”. E
agora, na luta, o patriarca revela ao seu oponente, em um gesto de rendição e
doação, sua própria realidade de quem engana, quem suplanta; mas o outro, que é
Deus, transforma esta realidade negativa em positiva: Jacó, o defraudador, se
converte em Israel; é-lhe dado um nome novo que lhe confere uma nova
identidade. Mas também aqui o relato mantém sua duplicidade, porque o
significado mais provável de Israel é “Deus forte, Deus vence”.
Portanto, Jacó prevaleceu, venceu – é o próprio adversário
quem afirma isso -, mas sua nova identidade, recebida do próprio adversário,
afirma e testemunha a vitória de Deus. E quando Jacó pergunta, por sua vez, o
nome do seu oponente, este não quer dizer-lhe, mas o revela em um gesto
inequívoco, dando-lhe sua bênção. Esta bênção que o patriarca havia lhe pedido
no começo da luta lhe é concedida agora. E não é uma bênção obtida mediante
engano, mas gratuitamente concedida por Deus, que Jacó pode receber porque está
sozinho, sem proteção, sem astúcias nem enganos; entrega-se indefeso, aceita a
rendição e confessa a verdade sobre si mesmo. Por isso, no final da luta,
recebida a bênção, o patriarca pode finalmente reconhecer o outro, o Deus da
bênção: “Vi Deus face a face e minha vida foi poupada” (v. 31); agora pode
atravessar o vau, carregando um nome novo, mas “vencido” por Deus e marcado
para sempre, mancando devido ao ferimento recebido.
As explicações que a exegese bíblica oferece com relação a
este fragmento são muitas; em particular, os estudiosos reconhecem aqui
tentativas e componentes literários de vários tipos, como também referências a
algum conto popular. Mas quando estes elementos são assumidos pelos autores
sagrados e englobados no relato bíblico, mudam de significado e o texto se abre
a dimensões mais amplas. O episódio da luta no Jaboc se mostra ao crente como
texto paradigmático no qual o povo de Israel fala da sua própria origem e
delineia os traços de uma relação especial entre Deus e o homem. Por isso, como
se afirma também no Catecismo da Igreja Católica, “a tradição espiritual da
Igreja divisou nesta narrativa o símbolo da oração como combate da fé e vitória
da perseverança” (n. 2573). O texto bíblico nos fala da longa noite da busca de
Deus, da luta para conhecer o nome e ver seu rosto; é a noite da oração que,
com tenacidade e perseverança, pede a Deus a bênção e um nome novo, uma nova
realidade, fruto da conversão e do perdão.
A noite de Jacó no vau de Jaboc se converte, assim, para o
crente, em um ponto de referência para entender a relação com Deus que, na
oração, encontra sua máxima expressão. A oração exige confiança, proximidade,
quase um corpo a corpo simbólico, não com um Deus adversário e inimigo, mas com
um Senhor que abençoa e que permanece sempre misterioso, que aparece como
inalcançável.
Por isso,o autor sacro utiliza o símbolo da luta, que
envolve força de ânimo, perseverança, tenacidade em alcançar o que se deseja. E
se o objeto do desejo é a relação com Deus, sua bênção e seu amor, então a luta
só pode culminar no dom de si mesmo a Deus, no reconhecimento da própria
fraqueza, que vence quando consegue abandonar-se nas mãos misericordiosas de
Deus.
Queridos irmãos e irmãs, toda a nossa vida é como esta longa
noite de luta e de oração, de consumar no desejo e na petição de uma bênção de
Deus que não pode ser arrancada ou conseguida somente com as nossas forças, mas
que deve ser recebida com humildade d'Ele, como dom gratuito que permite,
finalmente, reconhecer o rosto de Deus. E mais ainda: Jacó, que recebe um nome
novo e se converte em Israel, também dá ao lugar um nome novo, onde lutou com
Deus, rezou-lhe; nomeia-o Fanuel, que significa “rosto de Deus”. Com esse nome,
ele reconhece que o lugar está cheio da presença do Senhor; santifica essa
terra, dando-lhe o selo daquele misterioso encontro com Deus. Aquele que se
deixa abençoar por Deus, abandona-se n'Ele, deixa-se transformar por Ele, torna
o mundo abençoado. Que o Senhor nos ajude a combater a boa batalha da fé (cf.
1Tm 6,12; 2Tm 4,7) e a pedir, na nossa oração, a sua bênção, para que nos
renove na espera de ver seu rosto.
Obrigado!
No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em
vários idiomas. Em português, disse:
Queridos irmãos e irmãs
Hoje gostaria de refletir sobre um texto do Livro de
Gênesis: a luta noturna do Patriarca Jacó com Deus. Jacó havia usurpado a
primogenitura do seu irmão Esaú e obtivera, por meio de engano, a bênção de seu
pai Isaac indo depois refugiar-se junto do seu tio Labão. Ao voltar para a sua
pátria improvisadamente é atacado, de noite, por um estranho. Ao cabo de uma
fatigosa luta “corpo-a-corpo” com este personagem misterioso, que aos poucos
vai revelando a sua natureza divina, Jacó, cujo nome derivava do verbo hebraico
que significa “enganar, suplantar”, recebe um novo nome que lhe vem de Deus:
passa a se chamar Israel, que significa “Deus é forte, Deus vence”. A Tradição
espiritual da Igreja interpretou esse episódio como um símbolo da oração como
combate da fé e da vitória da perseverança. Realmente, a oração exige confiança
e intimidade, quase um corpo-a-corpo simbólico, não com um Deus adversário, mas
com o Senhor que abençoa e que permanece misterioso. De fato, toda nossa vida é
como esta longa noite de luta e de oração: para receber com humildade a bênção
que nos transforma e que nos permite reconhecer a face de Deus.
Queridos peregrinos vindos de Portugal e do Brasil,
nomeadamente da paróquia de Itú, agradeço a vossa presença e quanto a mesma
significa de confissão de fé e amor a Deus. Procurai sempre na oração o auxílio
do Senhor para combater a boa batalha da fé. De coração, a todos abençôo. Ide
com Deus!
Fonte: Zenit
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