1. A fé termina nas
coisas
O filósofo Edmund Husserl resumiu o programa da sua
fenomenologia no lema: Zu den Sachen selbst!, dirigir-se para as mesmas coisas,
para as coisas como elas realmente são na realidade, antes da conceituação e
formulação delas. Outro filósofo, vindo depois dele, Sartre, diz que "as
palavras e, com elas, o significado das coisas e os modos do seu uso” são
apenas “os sinais sutis de reconhecimento que os homens têm traçado na
superfície deles": é necessário superá-los para ter a súbita revelação,
que tira o fôlego, da "existência" das coisas (J.-P. Sartre, La
Nausea, trad. ital, Milano 1984, p. 193 s, Tradução Portuguesa nossa).
Santo Tomás de Aquino tinha formulado muito antes um
princípio análogo em referência às coisas ou aos objetos da fé: "Fides non
terminatur ad enunciabile, sed ad rem”: a fé não termina nos enunciados, mas na
realidade (Tomas de Aquino, Suma teologica, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.). Os Padres
da Igreja são modelos insuperáveis desta fé que não para nas fórmulas, mas vai
até a realidade. Tendo passado esta era de ouro dos grandes padres e doutores,
vemos quase que imediatamente o que um estudioso do pensamento patrístico
define “o triunfo do formalismo" [Cf. G. Prestige, God in Patristic
Thought, London 1936, chap. XIII( trd. Ital., Dio nei pensiero dei Padri,
Bologna, il Mulino, 1969, pp. 273 ss), Tradução portuguesa nossa]. Conceitos e
termos, como substância, pessoa, hipóstase, são analisados e estudados por si
mesmos, sem a constante referência à realidade que com eles os criadores do
dogma tinham tentado expressar.
Atanásio é talvez o caso mais exemplar de uma fé que está
mais preocupada com o conteúdo do que com o seu enunciado. Por algum tempo,
depois do Concílio de Nicéia, ele parece quase ignorar o termo homousios,
consubstancial, embora defendendo com a tenacidade que vimos na última vez o
seu conteúdo, ou seja, a plena divindade do Filho e a sua igualdade com o Pai.
Também está pronto para acolher termos equivalentes para ele, desde que ficasse
claro que se pretendia manter firme a fé de Nicéia. Só mais tarde, quando ele
percebeu que aquele termo era o único que não deixava brechas para as heresias,
fez cada vez mais uso dele.
Destacamos isto porque conhecemos os danos que causados à
comunhão eclesial o fato de dar mais importância ao acordo dos termos do que ao
conteúdo da fé. Nos últimos anos tem sido possível restaurar a comunhão com
algumas igrejas orientais, as assim chamadas
monofisitas, tendo reconhecido que
o contraste deles com a fé de Calcedônia estava no significado diferente
atribuído aos termos ousia e hipóstase, e não na substância da doutrina. Também
o acordo entre a Igreja Católica e a Federação Mundial das Igrejas Luteranas sobre
o tema da justificação pela fé, assinado em 1998, mostrou que o conflito
secular sobre este ponto estava mais nos termos do que na realidade. As
fórmulas, uma vez inventadas, tendem a fossilizar-se, tornando-se bandeiras e
sinais partidárias, ao invés de expressões de fé vivida.
2. São Basílio e a
divindade do Espírito Santo
Hoje subimos nos ombros de um outro gigante, São Basílio, o
Grande (329-379), para analisar com ele, uma outra realidade da nossa fé, o
Espírito Santo. Veremos em breve como também ele é um modelo da fé que não para
nas fórmulas, mas vai até a realidade.
Sobre a divindade do Espírito Santo, Basílio não fala nem a
primeira e nem a última palavra, ou seja não é aquele que abre o debate e nem
sequer aquele que o conclui. Quem abriu a discussão sobre o estatuto ontológico
do Espírito foi Santo Atanásio. Até ele, a doutrina sobre o Paráclito
permaneceu na sombra, e entendemos o motivo: não era possível definir a posição
do Espírito Santo na divindade, antes de ter definido aquela do Filho. Somente
se limitava a dizer no símbolo de fé: “e creio no Espírito Santo”, sem outros
acréscimos.
Atanásio, nas Cartas a Serapião, inicia o debate que levará
à definição da divindade do Espírito Santo no Concílio de Constantinopla em
381. Ensina que o Espírito é plenamente divino, consubstancial com o Pai e com
o Filho, que não pertence ao mundo das criaturas, mas ao do criador e a prova,
também aqui, é que o seu contato nos santifica, nos diviniza, coisa que não
poderia fazer se não fosse ele mesmo Deus.
Eu disse que Basílio não falou nem sequer a última palavra.
Ele se abstém de aplicar ao Paráclito o título de "Deus" e aquele de
"consubstancial". Afirma claramente a fé na plena divindade do
Espírito usando expressões equivalentes, como a igualdade com o Pai e o Filho
na adoração (a isotimia), a sua homogeneidade e não heterogeneidade, no que diz
respeito a eles. São os termos nos quais a divindade do Espírito Santo foi
definida no Concílio Ecumênico de Constantinopla do ano 381 e que constroem o
artigo de fé sobre o Espírito Santo que professamos ainda hoje no credo.
Essa atitude prudencial de Basílio, dirigida a não
distanciar ainda mais o partido adversário dos Macedonianos, provocou-lhe a
crítica de Gregório Nazianzeno que coloca o amigo entre aqueles que tiveram
bastante coragem para pensar que o Espírito Santo seja Deus, mas não o bastante
para proclamá-lo tal explicitamente. Quebrando todo atraso, ele escreve:
"O Espírito é portanto Deus? Certamente! É consubstancial? Sim, se é
verdade que é Deus" (Gregorio Nazianzeno, Oratio 31, 5.10; cf. também
Oratio 6: “Até quando esconderemos a lâmpada debaixo do móvel e não
proclamaremos em alta voz a plena divindade do Espírito Santo?”).
Se, portanto, Basílio não fala, sobre a teologia do Espírito
Santo, nem a primeira nem a última palavra, por que escolher justamente ele
como nosso mestre de fé no Paráclito? É que Basílio, como já Atanásio, está
mais preocupado pela “coisa” do que pela sua formulação, mais pela plena
divindade do Espírito do que pelos termos com os quais expressar essa fé. O que
mais lhe interessa, para colocá-lo nos termos de Tomás de Aquino, é a coisa e
não a sua enunciação. Ele nos transporta no coração da pessoa e da ação do
Espírito Santo.
Basílio tem uma Pneumatologia concreta, vivida, não escolástica,
mas “funcional” no sentido mais positivo do termo, e é aquele que a faz
particularmente atual e útil para nós hoje. Por causa da conhecida questão do
Filioque, a pneumatologia acabou restringindo-se nos séculos, quase que
exclusivamente, ao problema do modo da profissão do Espírito Santo: se somente
do Pai como dizem os orientais, ou também do Filho, como professam os latinos.
Algo da pneumatologia concreta dos Padres foi passada nos tratados sobre
"Os Sete Dons do Espírito Santo", mas limitado ao âmbito da
santificação pessoal e à vida contemplativa.
O Concílio Vaticano II iniciou uma renovação neste campo,
por exemplo, quando passou os carismas da hagiografia, ou seja, da vida dos
santos, para a eclesiologia, ou seja, para a vida da Igreja, falando deles na
Lumen Gentium (Cfr. Lumen gentium, 12.). Mas foi apenas um começo; ainda há
muito a ser feito para destacar a ação do Espírito Santo em toda a vivência do
povo de Deus. Na ocasião do 16º centenário do Concílio Ecumênico de
Constantinopla de 381, o Beato João Paulo II escreveu uma carta apostólica na
qual entre outras coisas dizia: "Todo o trabalho de renovação da Igreja
que o Concílio Vaticano II tão providencialmente propôs e começou [...] não
pode ser realizado a não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz
e da sua força" (João Paulo II. “Em Concílio Costantinopolitano I”, em AAS
73, 1981, p. 521.). Basílio, veremos, será nosso guia neste caminho.
3. O Espírito Santo
na história da salvação e na Igreja
É interessante conhecer a origem do seu tratado sobre o
Espírito Santo. Curiosamente está ligada à oração do Gloria Patri. Durante uma
liturgia, Basílio tinha pronunciado a doxologia às vezes na forma: "Glória
ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo”, às vezes sob a forma: "Glória
ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo". Esta segunda forma esclarecia mais
que a primeira a igualdade das três pessoas, coordenando-as, ao invés de
subordiná-las, entre si. Na atmosfera superaquecida das discussões sobre a
natureza do Espírito Santo, a coisa provocou protestos e Basílio escreveu a sua
obra para justificar as suas ações; na prática, para defender contra os hereges
macedonianos a plena divindade do Espírito Santo.
Mas vamos direto ao ponto que faz a doutrina de Basílio
especialmente atual: a sua capacidade de destacar a ação do Espírito em cada
momento da história da salvação e em cada setor da vida da Igreja. Começa da
obra do Espírito na criação.
"Na criação dos seres a causa primeira de tudo o que
existe é o Pai, a causa instrumental o Filho, a causa aperfeiçoadora é o
Espírito. É pela vontade do Pai que os espíritos criados subsistem; é pela
força operativa do Filho que são conduzidos ao ser e pela presença do Espírito
que chegam à perfeição... Se tentas tirar o Espírito da criação, todas as
coisas se misturarão e a vida delas aparece sem lei, sem ordem, sem qualquer
determinação" (Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 38 (PG 32, 137B);
trad. ital. di E. Cavalcanti, L’esperienza di Dio nei Padri Greci, Roma 1984,
Tradução portuguesa nossa).
Santo Ambrósio retomará de Basílio este pensamento tirando
dele uma conclusão sugestiva. Referindo-se aos primeiros dois versículos do
Gênesis (“a terra estava deserta e sem forma e as trevas cobriam o abismo”),
ele observa:
"Quando o Espírito começou a pairar sobre isso, o
criado não tinha ainda nenhuma beleza. Em vez disso, quando a criação recebeu a
operação do Espírito, obteve todo este esplendor de beleza que a fez brilhar
como 'mundo'“ (Ambrogio, Sobre o Espírito Santo, II, 32.).
Em outras palavras, o Espírito Santo é aquele que faz o
criado passar do caos para o cosmos, que faz dele algo belo, ordenado, limpo:
um “mundo” (mundus) precisamente, de acordo com o significado original desta
palavra e da palavra grega cosmos. Agora nós sabemos que a ação criadora de
Deus não se limita ao instante inicial, como se acreditava na visão deísta ou
mecanicista do universo. Deus não “foi” uma vez, mas sempre “é” criador. Isso
significa que Espírito Santo é aquele que faz passar o universo, a Igreja e
cada pessoa, do caos ao cosmos, ou seja: da desordem à ordem, da confusão à
harmonia, da deformidade à beleza, do velho ao novo. Não, é claro,
mecanicamente e abruptamente, mas no sentido de que está trabalhando nela e
guia a sua evolução para uma finalidade. Ele é aquele que sempre “cria e renova
a face da terra” (cf. Sl 104,30).
Isso não significa, explicava Basílio naquele mesmo texto,
que o Pai tinha criado algo imperfeito e “caótico” que tinha necessidade de
correções; simplesmente, era o plano e a vontade do Pai de criar por meio do
Filho e conduzir os seres à perfeição por meio do Espírito.
Da criação o santo
Doutor passa a ilustrar a presença do Espírito na obra da redenção:
"No que diz respeito ao plano de salvação (oikonomia)
para o homem por obra do nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo,
estabelecido segundo a vontade de Deus, quem poderia negar que se realiza por
meio da graça do Espírito?" (Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39.).
Chegando aqui, Basílio se abandona a uma contemplação da
presença do Espírito na vida de Jesus que está entre as passagens mais bonitas
da obra e abra à pneumatologia um campo de pesquisa que só recentemente começou
a ser reconsiderado (J.D.G. Dunn, Jesus and the Spirit, London 1988.). O
Espírito Santo está em ação já no anúncio dos profetas e na preparação para a
vinda do Salvador; é pelo seu poder que se realiza a encarnação no seio de
Maria; é ele o crisma com o qual Jesus foi ungido por Deus no batismo. Toda
obra sua foi realizada com a presença do Espírito. Este "estava presente
quando foi tentado pelo diabo, quando fazia milagres, não o deixou quando
ressuscitou dos mortos, e no dia da Páscoa o derramou sobre os discípulos (cf.
Jo 20, 22 s.). O Paráclito foi "o companheiro inseparável" de Jesus
ao longo da sua vida.
Da Vida de Jesus, São
Basílio passa a ilustrar a presença do Espírito na Igreja:
"E a organização da Igreja, não é claro e indiscutível
que é obra do Espírito? Ele próprio deu à Igreja, diz Paulo, em primeiro lugar
os apóstolos, depois os profetas, depois os mestres [...] Esta ordem está
organizada de acordo com a diversidade dos dons do Espírito" (Basilio,
Sobre o Espírito Santo, XVI, 39).
Na anáfora que leva o nome de São Basílio - que a nossa
atual Oração Eucarística IV tem seguido de perto -, o Espírito Santo tem um
lugar central.
A última imagem retrata a presença do Paráclito na
escatologia: "Também no momento do evento da esperada manifestação do
Senhor aos céus – escreve Basílio – não está ausente o Espírito Santo. Neste
momento haverá, para os salvos, a passagem das “primícias” para a posse plena
do Espírito” e para os réprobos a separação definitiva, o corte claro, entre a
alma e o Espírito (Ib. XVI, 40.).
4. A alma e o
Espírito
São Basílio não fica, porém, com a ação do Espírito na
história da salvação e na Igreja. De ascético e homem espiritual, o seu
principal interesse é pela ação do Espírito na vida de cada batizado. Embora
ainda sem estabelecer a distinção e a ordem das três vias que se tornarão
clássicas mais tarde, ele destaca maravilhosamente a ação do Espírito Santo na
purificação da alma do pecado, na sua iluminação e na divinização que ele chama
também “intimidade com Deus” (Ib. XIX, 49.).
Só podemos ler a página na qual, em referência constante com
as Escrituras, o santo descreve essa ação e deixar-nos conquistar pelo seu
entusiasmo:
"A relação de familiaridade do Espírito com a alma, não
é uma aproximação no espaço – de fato, como poderia aproximar-se o incorpóreo
corporalmente? – mas, em vez disso, consiste na exclusão das paixões, as quais,
como consequência da sua atração pela carne, chegam à alma e a separam da união
com Deus. Purificados da imundície da qual tinha se sujado por meio do pecado e
voltado para a beleza natural, como tendo restituído a uma imagem real a antiga
forma por meio da purificação, só assim é possível aproximar-se do Paráclito.
Ele, como um sol, reconhecendo o olho purificado, te mostrará em si mesmo a
imagem do invisível. Na beata contemplação da imagem, verás a inefável beleza
do arquétipo. Por meio dele se elevam os corações, os fracos são levados pela
mão, aqueles que progridem atingem a perfeição. Ele, iluminando aqueles que
foram purificados de toda mancha, torna-os espirituais através da comunhão com
ele. E como os corpos claros e transparentes, quando um raio os atinge,
tornam-se eles próprios brilhantes e refletem um outro raio, assim as almas
portadoras do Espírito são iluminadas pelo Espírito; elas mesmas se tornam
plenamente espirituais e transmitem aos outros a graça. Daqui vem a presciência
das coisas futuras; a compreensão dos mistérios; a percepção das coisas
ocultas; as distribuições dos carismas, a cidadania celeste; a dança com os
anjos; a alegria sem fim; a permanência em Deus; a semelhança com Deus; o
cumprimento dos desejos: tornar-se Deus” (Ib. IX,23.)
Não foi difícil para os estudiosos descobrir por detrás do
texto de Basílio imagens e conceitos derivados da Enéade de Plotino e falar, a
este respeito, de uma infiltração estranha no corpo do cristianismo. Na
verdade, trata-se de um tema puramente bíblico e paulino que se expressa, como
era correto, em termos familiares e significativos para a cultura do tempo. Na
base de tudo Basílio não coloca a ação do homem – a contemplação – , mas a ação
de Deus e a imitação de Cristo. Estamos na antítese da visão de Plotino e de
toda filosofia. Tudo, para ele, começa com o batismo que é um novo nascimento.
O ato decisivo não está no fim, mas no início do caminho:
"Como na corrida dupla dos estados, uma parada e um
descanso separam os caminhos em sentidos opostos, assim também na mudança de
vida é necessário que uma morte se coloque no meio das duas vidas para colocar
fim ao que precede e para começar as coisas sucessivas. Como conseguir descer
aos infernos? Imitando a sepultura de Cristo por meio do batismo" (Ib.
XV,35.).
O esquema básico é o mesmo de Paulo. No capítulo sexto da
Carta aos Romanos o Apóstolo fala da purificação radical do pecado que acontece
no batismo e no capítulo oitavo descreve a luta que, sustentado pelo Espírito,
o cristão deve levar pelo resto da sua existência, contra os desejos da carne,
para avançar na vida nova:
"Os que vivem de acordo com a carne aspiram às coisas
da carne; mas os que vivem de acordo com o Espírito aspiram às coisas do
Espírito. De fato, a carne aspira ao que conduz à morte; mas o Espírito aspira
ao que dá vida e paz. É que a carne aspira à inimizade com Deus, uma vez que
não se submete à lei de Deus; aliás nem sequer é capaz disso. Os que vivem sob
o domínio da carne são incapazes de agradar a Deus [...]. Portanto, irmãos,
somos devedores, mas não à carne, para vivermos de acordo com a carne. É que,
se viverdes de acordo com a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes
morrer as obras do corpo, vivereis". (Rm 8, 5-13).
Não devemos admirar-nos se para ilustrar a tarefa descrita
por São Paulo, Basílio tenha usado uma imagem de Plotino. Ela está na origem de
uma das metáforas mais universais da vida espiritual e hoje fala a nós o mesmo
que aos cristãos daquela época:
"Vamos, retornes a ti mesmo e olhes; e se ainda não te
vês bonito, imita o autor de uma estátua que tem que conseguir a sua beleza: em
parte bate com o cinzel, em parte aplaina; aqui engrossa, ali afina, até quando
tenha conseguido expressar um belo rosto na estátua. Igualmente também tu tires
o supérfluo, endireita o que está torto, e, por força de purificar o que é
escuro, faça que se torne brilhante e não deixe de atormentar a tua estátua até
que o divino esplendor da virtude não brilhe diante de ti" [Plotino,
Enneadi I, 9 (trad. ital. di V. Cilento, vol. I, Laterza, Bari 1973, p. 108,
tradução portuguesa nossa].
Se a escultura, como dizia Leonardo da Vinci, é a arte de
remover, tem razão o filósofo quando compara a purificação e a santidade com a
escultura. Para o cristão não se trata, porém, de alcançar uma beleza abstrata,
de construir uma bonita estátua, mas de trazer à luz e tornar mais brilhante a
imagem de Deus que o pecado tende constantemente a cobrir.
Conta-se que um dia Michelangelo, passeando em um pátio de
Florença, viu um bloco de mármore bruto coberto de poeira e lama. Parou de
repente para contemplá-lo, depois, como iluminado por um súbito clarão, disse
aos presentes: "Nesta massa de pedra está escondido um anjo; quero tirá-lo
daí!" E começou a trabalhar com um cinzel para moldar o anjo que havia
vislumbrado. Assim é também conosco. Somos ainda massa de pedra bruta, tendo
acima muita “terra” e muitos pedaços inúteis. Deus Pai nos olha e diz: “Neste
pedaço de pedra se esconde a imagem do meu Filho; quero tirá-la daí, para que
brilhe eternamente do meu lado no céu!” E para fazer isso usa o cinzel da cruz,
nos poda (cf. Jo 15,2)
Os mais generosos, não só suportam os golpes do cinzel que
vêm de fora, mas também colaboram, o quanto lhes seja concedido, impondo-se
pequenos, ou grandes, mortificações voluntárias e quebrando a vontade velha
deles. Dizia um padre do deserto: "Se queremos ser completamente livres,
aprendamos a quebrar a nossa vontade, e assim, aos poucos, com a ajuda de Deus,
avançaremos e chegaremos à plena liberação das paixões. É possível quebrar dez
vezes a própria vontade em brevíssimo tempo e lhes digo como. Você está
passeando e vê algo; o seu pensamento lhe diz: ‘Olha lá’, mas ele responde ao
seu pensamento: ‘Não, não olho!’, e quebra a sua vontade” (Doroteo di Gaza,
Insegnamenti 1,20 (SCh 92, p. 177).
Este antigo Padre tem outros exemplos tirados da vida
monástica. Se está falando mal de alguém, talvez do superior; o teu homem velho
diz: “Participes também tu; diga aquilo que sabes”. Mas tu respondes: “Não”. E
mortificas o homem velho... Mas não é difícil alongar a lista com outros atos
de renúncia, próprios do estado ao qual se vive e do trabalho que se faz.
Enquanto se vive favorecendo os desejos da carne nós nos
parecemos aos dois famosos “Bronzes de Riace”, quando foram encontrados no
fundo do mar, todo cobertos de crustáceos e quase irreconhecíveis como figuras
humanas. Se também nós queremos brilhar, como estas duas obras-primas após a
sua restauração, a Quaresma é o momento oportuno para colocar mãos à obra.
5. Uma mortificação
"espiritual"
Existe um ponto em que a transformação do ideal de Plotino
em ideal cristão permaneceu incompleta, ou pelo menos pouco explícita. São
Paulo, ouvimos, diz: "Se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo,
vivereis". O Espírito não é, portanto, só o fruto da mortificação, mas
também o que a torna possível; não está só no final do caminho, mas também no
início. Os apóstolos não receberam o Espírito em Pentecostes porque se tornaram
fervorosos; tornaram-se fervorosos porque receberam o Espírito.
Os três Padres Capadócios, eram basicamente ascetas e
monges; Basílio, em particular, com as suas regras monásticas (Asceticon!), foi
o fundador do monaquismo cenobítico. Isso os levou a destacar fortemente a
importância do esforço humano. O irmão e discípulo de Basílio, Gregório de
Nissa, vai escrever nesta linha: "Na medida em que desenvolvas tuas lutas
pela piedade, nesta mesma medida se desenvolve também a grandeza da alma por
meio destas lutas e destes esforços” [Gregório Nisseno, De instituto christiano
(ed. W. Jaeger, Two Rediscovered Works, Leida 1954, p.46)].
Na geração seguinte, esta visão da ascese será retomada e
desenvolvida por autores espirituais, como João Cassiano, mas separada da
sólida base teológica que tinha em Basílio e em Gregório de Nissa. "É a
partir deste ponto – nota Bouyer – que o pelagianismo, colocando o esforço
humano antes da graça, terá o seu início" (L. Bouyer, La spiritualità dei
Padri, Edizioni Dehoniane, Bologna 1968, p. 295.) Mas este resultado negativo
dificilmente pode ser atribuído a Basílio e aos Capadócios.
Voltemos para concluir o motivo que faz com que a doutrina
de Basílio sobre o Espírito Santo seja perenemente válida e hoje, dizia, mais
do que nunca atual e necessária: a sua praticidade e adesão à vida da Igreja.
Nós latinos temos um caminho privilegiado para fazer nossa e transformar em
oração este mesmo tipo de pneumatologia: o hino do Veni Creator.
Ele é do início ao fim uma contemplação orante daquilo que o
Espírito concretamente faz: em toda a terra e na humanidade como Espírito
Criador; na Igreja, como Espírito de santificação (dom de Deus, água viva,
fogo, amor e unção espiritual) e como Espírito carismático (multiforme nos seus
dons, dedo da mão direita de Deus, que coloca sobre os lábios a palavra); na
vida individual do fiel, como luz para a mente, amor para o coração, cura para
o corpo; como nosso aliado na luta contra o mal e guia no discernimento do bem.
Invoquemo-Lo com as palavras da primeira estrofe,
pedindo-lhe para fazer passar também o nosso mundo e a nossa alma do caos para
o cosmos, da dispersão para a unidade, da feiura do pecado para a beleza da
graça.
Veni, Creator Spiritus,
Ó vinde Espírito criador;
Mentes tuorum visita,
visita os teus fiéis no profundo,
Imple superna gratia,
derrama a plenitude da graça,
Quae tu creasti pectora,
nos corações que tu criastes somente para ti
Fonte: Zenit
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