Apresentamos a primeira pregação do Advento pronunciada pelo
pregador da Casa Pontifícia, Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap, diante do papa
Bento XVI e da cúria romana, sobre "A resposta cristã ao cientificismo
ateu".
"Quando olho
para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: Que
coisa é o homem?" (Sl 8, 4s)
1. A tese do
cientificismo ateu
As três meditações deste Advento 2010 querem ser uma pequena
contribuição à necessidade da Igreja que levou o Santo Padre Bento XVI a
instituir o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização e
escolher este tema para a próxima Assembleia geral ordinária do Sínodo dos
Bispos: Nova evangelizatio ad cristianam fidem tradendam - A nova evangelização
para a transmissão da fé cristã.
A intenção é identificar alguns "nós" ou
obstáculos que fazem muitos países de antiga tradição cristã
"refratários" à mensagem do Evangelho, como diz o Santo Padre no Motu
Proprio com o qual estabeleceu o novo Conselho [1]. Os "nós" ou os
desafios que eu pretendo levar em consideração e aos quais eu gostaria de
tentar dar uma resposta de fé são o cientificismo, o secularismo e o
racionalismo. O apóstolo Paulo classifica esses desafios como "as muralhas
e fortalezas que se levantam contra o conhecimento de Deus" (cf. 2Cor 10,
4).
Nesta primeira meditação examinemos o cientificismo. Para
compreender o que se entende com este termo podemos começar pela descrição
feita por João Paulo II:
"Outro perigo a ser considerado é o cientificismo. Esta
concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas, formas de conhecimento
distintas daquelas que são próprias das ciências
positivas, relegando para o
âmbito da pura imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico, como o
saber ético e estético." [2].
Podemos resumir assim a tese principal desta corrente de
pensamento:
Primeira tese. A ciência e, particularmente a cosmologia, a
física e a biologia, são a única forma objetiva e séria de conhecimento da
realidade. "As sociedades modernas, escreveu Monod, estão construídas
sobre a ciência. Devem a ela sua riqueza, sua potência e a certeza de que a
riqueza e o poder ainda serão maiores e mais acessíveis amanhã ao homem, se ele
o quiser [...]. Equipadas com todo o poder, dotadas de toda riqueza que a
ciência oferece, nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas de
valores, já prejudicados pela mesma ciência subjacente" [3].
Segunda tese. Esta forma de conhecimento é incompatível com
a fé que se baseia em pressupostos que não são nem demonstráveis nem refutáveis
Nesta linha, o ateu militante R. Dawkins chega ao ponto de
chamar de "analfabetos" os cientistas que se dizem crentes,
esquecendo-se de tantos cientistas mais famosos do que ele que já se declararam
e continuam declarando-se crentes.
Terceira tese. A ciência já demonstrou a falsidade ou, pelo
menos, a inutilidade da hipótese de Deus. É a afirmação que recebeu ampla
cobertura dos meios de comunicação do mundo meses atrás, à raiz de uma
declaração do astrofísico inglês Stephen Hawking. Este, ao contrário do que já
havia escrito anteriormente, sustenta em seu último livro The Grand Design, que
o conhecimento advindo da física torna desnecessário acreditar numa divindade
criadora do universo: "a criação espontânea é a razão pela qual as coisas
existem".
Quarta tese. Quase a totalidade ou a grande maioria dos
cientistas são ateus. Esta é a afirmação do ateísmo científico militante, que
tem em Richard Dawkins, autor do livro God's Delusion (Deus, um delírio), seu
mais ativo propagador.
Todos estes argumentos se revelam falsos, não do ponto de vista
do raciocínio a priori ou da argumentação teológica e da fé, mas da própria
análise dos resultados da ciência e das opiniões de vários cientistas ilustres
do passado e do presente. Um cientista do calibre de Max Planck, o pai da
física quântica, diz sobre a ciência aquilo que Agostinho, Tomás de Aquino,
Pascal, Kierkegaard e outros já tinham afirmado sobre a razão: "A ciência
leva a um ponto, além dele não pode mais dirigir" [4].
Não repetirei a refutação dos argumentos anunciados que já
foi feita por cientistas e filósofos competentes. Cito, por exemplo, a crítica
pontual de Roberto Timossi, no livro L'illusione dell'ateismo. Perché la
scienza non nega Dio (A ilusão do ateísmo. Porque a ciência não nega Deus), que
tem apresentação do cardeal Angelo Bagnasco (Edições São Paulo 2009). Limito-me
a uma observação elementar. Na semana em que a mídia espalhou a declaração
acima, de que a ciência tornou desnecessária a hipótese de um criador, eu me vi
na necessidade, na homilia de domingo, de explicar a cristãos muito simples de
uma cidade de Reatino onde estava o erro fundamental de cientistas e ateus e
porque não deveriam ficar impressionados com a sensação despertada por essa
declaração. Fiz isso com um exemplo que pode ser útil repetir aqui em um
contexto tão diferente.
"Existem aves noturnas, como a coruja, cujos olhos são
feitos para ver no escuro da noite, não de dia. A luz do sol cega. Estes
pássaros sabem tudo e se movem com agilidade no mundo noturno, mas não são
ninguém no mundo diurno. Vamos adotar, por um momento, o tipo de fábulas nas
quais os animais falam uns com os outros. Suponha que uma águia faça amizade
com uma família de corujas e converse com elas sobre o sol: como ele ilumina
tudo, como, sem ele, tudo iria mergulhar no escuro e no frio, como seu próprio
mundo noturno não existiria sem o sol. O que diria a coruja? "Você mente!
Nunca vi o seu sol. Nos movemos muito bem e conseguimos alimento sem ele. Seu
sol é uma hipótese inútil, não existe".
É exatamente isso que faz o cientista ateu quando diz:
"Deus não existe". Julga um mundo que não conhece, aplica suas leis a
um objeto que está fora do seu alcance. Para ver Deus é necessário olhar com
uma perspectiva diferente, aventurar-se fora da noite. Neste sentido, ainda é
válida a antiga afirmação do salmista: "Diz o insensato: Deus não
existe".
2. Não ao
cientificismo, sim à ciência
A rejeição do cientificismo não deve, naturalmente, levar à
rejeição ou à desconfiança na ciência, assim como uma rejeição do racionalismo
não nos leva a rejeitar a razão. Fazer o contrário seria um desserviço à fé,
antes mesmo que à ciência. A história tem nos ensinado dolorosamente onde nos
leva uma atitude como essa.
De uma atitude aberta e construtiva à ciência, nos deu um
exemplo luminoso o novo beato John Henry Newman. Nove anos depois da publicação
da obra de Darwin sobre a evolução das espécies, quando não poucas pessoas ao
redor se mostravam turbadas e perplexas, ele assegurava, exprimindo um juízo
que antecipava o juízo atual da Igreja sobre a não incompatibilidade da teoria
com a fé católica. Vale a pena escutar novamente trechos centrais da sua carta
ao canônico J. Walker, que ainda conservam grande parte de sua validade:
"Essa [a teoria de Darwin] não me assusta [...] Não me
parece que se negue a criação pelo fato do Criador, milhões de anos atrás, ter
imposto leis à matéria. Não negamos nem delimitamos o Criador por ter criado a
ação autônoma que deu origem ao intelecto humano dotado quase de um talento
criativo; menos ainda negamos ou delimitamos seu poder se acreditamos que Ele
tenha assinado leis à matéria tais como plasmar e construir mediante a
instrumentalidade cega através de eras inumeráveis o mundo como o vemos hoje
[...]. A teoria do senhor Darwin não deve ser necessariamente ateia, que ela
seja verdadeira ou não; pode simplesmente estar surgindo uma ideia mais
alargada da Divina Presciência e Capacidade... À primeira vista, não vejo como
a ‘evolução casual de seres orgânicos' seja incoerente com o plano divino - É
casual para nós, não para Deus" [5].
Sua grande fé permitia que Newman visse com grande
serenidade as descobertas científicas presentes ou futuras. "Quando uma
enxurrada de fatos, reais ou presumidos, surge enquanto outros já se avizinham,
todos os crentes, católicos ou não, se sentem chamados a examinar o significado
destes fatos" [6]. Ele via nestas descobertas "uma conexão indireta
com as opiniões religiosas". Um exemplo desta conexão, acredito eu, é o
próprio fato de que, no mesmo ano em que Darwin elaborava a teoria da evolução
das espécies, ele, independentemente, anunciava sua doutrina do
"desenvolvimento da doutrina cristã". Referindo-se à analogia, neste
ponto, entre a ordem natural e física e a moral, ele escreveu: "Como o
Criador descansou no sétimo dia após o trabalho realizado e ainda hoje ele
‘continua agindo', assim ele comunicou de uma vez por todas o Credo no
princípio e continua favorecendo seu desenvolvimento e garantindo seu
crescimento" [7].
Da atitude nova e positiva da Igreja católica em relação à
ciência é expressão concreta a Academia Pontifícia das Ciências, na qual
cientistas eminentes de todo o mundo, crentes e não crentes, encontram-se para
expor e debater suas ideias sobre problemas de interesse comum para a ciência e
para a fé.
3. O homem para o
universo ou o universo para o homem?
Mas, repito, não é minha intenção fazer aqui uma crítica
geral do cientificismo. O que gostaria de destacar é um aspecto particular de
algo que tem um impacto direto e decisivo sobre a evangelização: trata-se da
posição que o homem ocupa na visão do cientificismo ateu.
Há agora uma corrida entre os cientistas não crentes,
especialmente os biólogos e cosmólogos, que vai mais longe ao afirmar a total
marginalização e insignificância do homem no universo e mesmo no grande mar da
vida. "A antiga aliança é quebrada - Monod escreveu -; o homem finalmente
se sabe sozinho na imensidão do Universo do qual emergiu por acaso. Seu dever,
como seu destino, não está escrito em nenhum lugar" [8]. "Sempre pensei
- afirma outro - ser insignificante. Conhecendo as dimensões do Universo não
chego a compreender quanto o sou verdadeiramente... Somos somente um pouco de
lama sobre um planeta que pertence ao sol" [9].
Blaise Pascal refutou de antemão esta tese com um argumento
que ainda mantém seu vigor:
"O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza;
mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para o
aniquilar: um vapor, uma gota de água, bastam para o matar. Mas quando o
universo o aniquilasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata,
porque sabe que morre, e a superioridade que o universo tem sobre ele; o
universo não sabe nada disso." [10].
A visão cientificista da realidade, junto com o homem,
retira subitamente do centro do universo inclusive Cristo. Ele é reduzido, por
usar uma expressão de M. Blondel, a "um acidente histórico, isolado do
cosmo como um episódio postiço, um intruso ou um perdido na imensidão hostil e
esmagadora do Universo" [11].
Esta visão do homem começa a ter reflexos práticos na
cultura e na mentalidade. Explicam-se assim certos excessos do ecologismo que
tendem a equiparar os direitos dos animais e até das plantas aos direitos do
homem. É sabido que existem animais mais bem cuidados e alimentados que milhões
de crianças. A influência é sentida inclusive no campo religioso. Há formas
difusas de religiosidade nas quais o contato e a sintonia com a energia do
cosmo tomaram o lugar do contato com Deus como caminho de salvação. Aquilo que
Paulo dizia de Deus: "Pois nele vivemos, nos movemos e existimos"
(At. 17, 28), diz aqui do cosmo material.
De certa forma, trata-se do retorno à era pré-cristã como
regime de vida: Deus - universo - homem, à qual a Bíblia e o Cristianismo
opuseram o regime: Deus - homem - universo. Uma das acusações mais violentas
que o pagão Celso faz aos judeus e cristãos é a de dizer que "há Deus e,
logo depois dele, nós, desde que fomos criados por ele à sua semelhança; tudo
nos é subordinado: a terra, a água, o ar, as estrelas, tudo existe por nós e
está ordenado ao nosso serviço" [12].
Mas há ainda uma profunda diferença: no pensamento antigo,
principalmente o grego, o homem, mesmo subordinado ao universo, possui uma
‘dignidade altíssima', como mostrou a obra magistral de Max Pohlenz, "O
homem grego" [13]; aqui parece que há prazer em deprimir o homem e tirar
dele qualquer pretensão de superioridade sobre o resto da natureza. Mais que
"humanismo ateu", pelo menos a partir deste ponto de vista,
deveríamos falar, no meu modo de ver, de anti-humanismo, ou mesmo
"desumanismo ateu".
Chegamos agora à visão cristã. Celso não estava errado em
derivá-la da grande afirmação do Gênesis 1, 26 sobre o homem criado "à
imagem e semelhança de Deus [14]. A visão bíblica encontra sua mais esplêndida
expressão no Salmo 8:
"Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos,
vejo a lua e as estrelas que criaste:
Que coisa é o homem, para dele te lembrares,
que é o ser humano, para o visitares?
No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus,
de glória e de honra o coroaste.
Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos.
Tudo puseste sob os seus pés".
vejo a lua e as estrelas que criaste:
Que coisa é o homem, para dele te lembrares,
que é o ser humano, para o visitares?
No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus,
de glória e de honra o coroaste.
Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos.
Tudo puseste sob os seus pés".
A criação do homem à imagem de Deus possui implicações de
certa forma chocantes sobre o conceito de homem que o debate atual nos empurra
a trazer à luz. Tudo se baseia na revelação da Trindade trazida por Cristo. O
homem é criado à imagem de Deus, o que significa que ele compartilha a essência
íntima de Deus que é a relação amorosa entre Pai, Filho e Espírito Santo. É
claro que existe uma lacuna ontológica entre Deus e a criatura. No entanto,
pela graça, (jamais esqueçam esta afirmação!) esta lacuna é preenchida, de modo
que é menos profunda do que entre o homem e o resto da criação.
Somente o homem, de fato, como uma pessoa capaz de
relacionar-se, participa da dimensão pessoal e relacional de Deus, é sua
imagem. O que significa que, na sua essência, embora a um nível de criatura, é
o que, no nível incriado, são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em sua
essência. A pessoa criada é "pessoa" propriamente por esse núcleo
racional que a torna capaz de acolher o relacionamento que Deus quer
estabelecer com ela e, ao mesmo tempo, torna-se um gerador de relações para os
outros e o mundo.
4. A força da verdade
Vejamos como se poderia traduzir esta visão cristão da
relação homem-universo no campo da evangelização. Primeiro, um prefácio.
Resumindo o pensamento do mestre, um discípulo de Dionísio Areopagita enunciou
esta grande verdade: "Não se deve refutar a opinião dos outros, nem se
deve escrever contra uma opinião ou religião que não parece boa. Se deve
escrever só a favor da verdade e não contra os outros" [15].
Não se pode absolutizar este princípio (às vezes pode ser
útil e necessário refutar doutrinas falsas), mas é certo que a exposição
positiva da verdade é, muitas vezes, mais eficaz que a refutação do erro
contrário. É importante, creio, tomar em conta este critério na evangelização e
especialmente no confronto com os três obstáculos mencionados anteriormente:
cientificismo, secularismo e racionalismo. Na evangelização, é mais eficaz que
a polêmica contra eles, a exposição pacífica da visão cristã, contando com a
força inerente desta quando acompanhada de profunda convicção e feita, como
incutia São Pedro, "com doçura e respeito" (1Pd 3, 16).
A maior expressão da dignidade e da vocação do homem,
segundo a visão cristã, foi cristalizada na doutrina da deificação do homem.
Esta doutrina não teve tanta importância na Igreja Ortodoxa quanto na latina.
Os Padres gregos, superando todos custos que o uso de pagão tinha acumulado
sobre o conceito de deificação (theosis), fizeram dele o centro de sua
espiritualidade. A teologia latina tem insistido menos sobre ela. "O
propósito da vida para os cristãos gregos - lê-se no Dictionnaire des
Spiritualitè - é a divinização, o que para os cristãos do Ocidente é a
aquisição da santidade... O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para
devolver ao homem semelhança de Deus perdida em Adão e para divinizá-lo. Para
os latinos, ele se fez homem para redimir a humanidade... e para pagar a dívida
com a justiça de Deus" [16]. Poderíamos dizer, simplificando ao máximo,
que a teologia latina, depois de Agostinho, insiste sobre o que Cristo veio
tirar - o pecado -, e a grega insiste mais sobre o que ele veio dar aos homens:
a imagem de Deus, o Espírito Santo e a vida divina.
Não se deve forçar demais esta oposição, como às vezes
tendem a fazer alguns autores ortodoxos. A espiritualidade latina, por vezes,
expressa o mesmo ideal ainda que evite o termo divinização, que, é bom lembrar,
é estranho à linguagem bíblica. Na liturgia das horas da noite de Natal, vamos
ouvir a vibrante exortação de São Leão Magno, que expressa a mesma visão da
vocação cristã: "Reconhece, ó cristão, a tua dignidade. Uma vez
constituído participante da natureza divina, não penses em voltar às antigas
misérias da tua vida passada. Lembra-te de que cabeça e de que corpo és
membro" [17].
Infelizmente, alguns autores ortodoxos mantiveram-se firmes
à controvérsia do século XIV, entre Gregório Palamas e Barlaam, e parecem
ignorar a rica tradição mística latina. A doutrina de São João da Cruz, por
exemplo, de que os cristãos, redimidos por Cristo e tornados filhos no Filho,
estão imersos no fluxo das operações trinitárias e participam da vida íntima de
Deus não é menos elevada que a da divinização, ainda que se expresse em termos
diferentes. Também a doutrina sobre os dons da inteligência e da
sabedoria do Espírito Santo, tão cara a São Boaventura e autores
medievais, estava animada pelo mesma inspiração mística.
Não pode, contudo, deixar de reconhecer que a
espiritualidade ortodoxa tem algo a ensinar sobre este ponto ao resto da
cristandade, à teologia protestante ainda mais do que à teologia católica. Se
existe realmente alguma coisa verdadeiramente oposta à visão ortodoxa do cristão
deficado pela graça é a concepção protestante, particularmente a luterana, da
justificação extrínseca e legal de que o homem redimido é, "ao mesmo
tempo, justo e pecador", pecador em si mesmo, justo diante de Deus.
Acima de tudo, podemos aprender com a tradição oriental a
não reservar esse ideal sublime da vida cristã a uma elite espiritual chamada a
percorrer os caminhos da mística, mas oferecê-lo a todos os batizados, torná-lo
objeto de catequese para o povo, de formação religiosa nos seminários e noviciados.
Se volto a pensar nos meus anos de formação, me lembro de ter visto uma ênfase
quase exclusiva na ascese que centrava tudo na correção de vícios e na
aquisição da virtude. Quando perguntado pelos discípulos sobre o objetivo final
da vida cristã, um santo russo, São Serafim de Sarov, respondeu sem hesitação:
"A verdadeira finalidade da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de
Deus. Quanto à oração, o jejum, vigílias, esmolas e outras boas obras feitas em
nome de Cristo, são apenas meios para adquirir o Espírito Santo" [18].
5. "Tudo foi
feito por meio dele"
O Natal é a ocasião ideal para voltar a propor a nós mesmos
e aos demais este ideal, patrimônio comum da cristandade. É da encarnação do
Verbo que os Padres gregos derivam a própria possibilidade da divinização. São
Atanásio não se cansa de repetir: "O Verbo se fez homem para que
pudéssemos nos tornar Deus" [19]. "Ele se encarnou e o homem
tornou-se Deus, porque se uniu a Deus", escreve por sua vez São Gregório
Nazianzeno [20]. Com Cristo, é restaurado ou trazido à luz aquele ser "à
imagem de Deus" que é a base da superioridade do homem sobre o restante da
criação.
Dizia antes como a marginalização do homem traz consigo
automaticamente a marginalização de Cristo do universo e da história. Ainda
sobre este ponto de vista o Natal é a antítese mais radical da visão
cientificista. Sobre isso, escutaremos proclamar solenemente: "Tudo foi
feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe" (Jo
1,3); "pois é nele que foram criadas todas as coisas, tudo foi criado
através dele e para ele" (Cl 1,16). A Igreja assumiu essa revelação e nos
faz repetir no Credo: "Per quem omnia facta sunt": Por meio dele tudo
foi criado.
Ouvindo estas palavras - enquanto todos à nossa volta que
não fazem mais que repetir "O mundo se explica sozinho, sem necessidade da
hipótese de um criador", ou "somos frutos do acaso e da
necessidade" - se dá, sem dúvida, um choque, mas é mais fácil que se
produza um conversão e floresça a fé depois de um choque como esse que com uma
longa argumentação apologética. A questão crucial é: seremos capazes, nós que
aspiramos reevangelizar o mundo, de expandir nossa fé a essa dimensão? Nós
realmente acreditamos, de todo o coração, que "todas as coisas foram
feitas por meio de Cristo e em vista de Cristo"?
Em seu livro Introdução ao Cristianismo, há muitos anos,
Santo Padre, escreveu:
"A segunda parte principal do Credo coloca-nos
propriamente diante do elemento cristão fundamental: a crença de que o homem
Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o ‘Cristo' (ungido,
escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a
história humana... Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa escândalo
ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas de um tremendo
positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um único acontecimento
histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa existência inteira, e até a
história toda, sobre o que não passa de pobre palha de um acontecimento qualquer
a boiar no grande oceano da história?" [21].
Para estas questões, Santo Padre, nós vamos responder sem
hesitar, como faz o senhor nesse livro e como não se cansa de repetir hoje, na
sua qualidade de Sumo Pontífice: Sim, é possível, é libertador e alegre. Não
por nossas forças, mas pelo dom inestimável da fé recebemos e pela qual damos
graças infinitas a Deus.
* * *
[1] Bento XVI, Motu Proprio "Ubicunque et semper".
[2] João Paulo II, Parole sull'uomo, Rizzoli, Milano 2002,
p. 443; cf. anche Enc. "Fides et ratio", n. 88.
[3] J. Monod, Il caso e la necessità, Mondadori,
Milano, 1970, pag. 136-7. [Ed. original francesa: Jacques Monod, Le Hazard et
la necessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Seuil,
Paris 1970; English trans. Chance and Necessity. An Essay on the Natural
Philosophy of Modern Biology, Vintage 1971].
[4] M. Planck, O conhecimento do mundo físico, (cit. por
Timossi, op.cit. p. 160)
[5] J.H. Newman, in The Letters and Diaries, vol. XXIV,
Oxford 1973, pp. 77 s.
[6] J.H. Newman, Apologia pro vita sua, Brescia 1982, p.277
[7] J.H. Newman, Lo sviluppo della dottrina cristiana,
Bologna 1967.
[8] Monod, op. cit. p. 136.
[9] P. Atkins, citado por Timossi, op. cit. p. 482.
[10] B. Pascal, Pensamentos.
[11] M. Blondel et A. Valensin, Correspondance, Aubier,
Paris, 1957, p. 47.
[12] In Origene, Contra Celsum, IV, 23 (SCh 136, p.238;
cf. IV, 74 (ib. p. 366)
[13] Cf. M. Pohlenz, O homem grego, Firenze 1962.
[14] In Origene, op. cit., IV, 30 (SCh 136, p. 254).
[15] Scolii a Dionísio Areopagita in PG 4, 536; cf. Dionísio
Areopagita, Lettera VI (PG, 3, 1077).
[16] G. Bardy, in Dct. Spir., III, col. 1389 s.
[17] São Leão Magno, Sermo 21, 3: CCL 138, 88 (PL 54,
192-193)
[18] Diálogo com Motovilov, em Irina Gorainoff, Serafino di
Sarov, Gribaudi, Turin 1981. p. 156.
[19] S. Atanasio, J. Quasten, Patrologia, II, 22-83; Obras:
PG 25-28.
[20] S. Gregorio Nazianzeno, Discursos teológicos, III, 19
(PG 36, 100A).
[21] J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Herder, São
Paulo, 1970. Versão brasileira do Pe. José Wisniewski Filho, S.V.D., do
original alemão Einführung in das Christentum
Fonte: Zenit
Extraído do site da RCC Brasil
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